SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Bio-caminho

salloma Salomão Jovino da Silva, "Salloma Salomão é um dos vencedores do CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA RUTH DE SOUZA, em São Paulo, 2004. por dez anos foi Professor da FSA-SP, Produtor Cultural, Músico, Dramaturgo, Ator e Historiador. Pesquisador financiado pela Capes e CNPQ, investigador vistante do Instituto de Ciências Socais da Universidade de Lisboa. Orientações Dra Maria Odila Leite da Silva, Dr José Machado Pais e Dra Antonieta Antonacci. Lançou trabalhos artísticos e de pesquisa sobre musicalidades e teatralidades negras na diáspora. Segue curioso pelo Brasil e mundo afora atrás do rastros da diáspora negra. #CORRENTE- LIBERTADORA: O QUILOMBO DA MEMÓRIA-VÍDEO- 1990- ADVP-FANTASMA. #AFRORIGEM-CD- 1995- CD-ARUANDA MUNDI. #OS SONS QUE VEM DAS RUAS- 1997- SELO NEGRO. #O DIA DAS TRIBOS-CD-1998-ARUANDA MUNDI. #UM MUNDO PRETO PAULISTANO- TCC-HISTÓRIA-PUC-SP 1997- ARUANDA MUNDI. #A POLIFONIA DO PROTESTO NEGRO- 2000-DISSERTAÇÃO DE MESTRADO- PUC-SP. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- CD - 2002 -ARUANDA MUNDI #AS MARIMBAS DE DEBRET- ICS-PT- 2003. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- TESE DE DOUTORADO- 2005- PUC-SP. #FACES DA TARDE DE UM MESMO SENTIMENTO- CD- 2008- ARUANDA SALLOMA 30 ANOS DE MUSICALIDADE E NEGRITUDE- DVD-2010- ARUANDA MUNDI. Elenco de Gota D'Água Preta 2019, Criador de Agosto na cidade murada.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Expropriação ou apropriação cultural. Culturas negras sem negros no Brasil?

Por Juliana Domingos de Lima e Felipe Higa XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX “Vamos trabalhar com a idéia que tudo que é produzido pela mente e corpo humano nos pertence, somos humanos. Vamos admitir que a desigualdade cria situações de expropriação tanto material, quanto imaterial. Vamos pensar na sociedade brasileira como uma das mais desiguais do mundo e que as desigualdades incidem de forma diferente em termos raciais. Vamos admitir que a cultura brasileira seja o resultado do labor espiritual de todos os brasileiros, vamos pensar que os africanos tenham sido aqueles cujas existências não lhes pertenciam. Suas vidas foram expropriadas. Vamos pensar que o processo de expropriação não acabou com o fim da escravidão. Vamos admitir que a opressão racial atual se desdobra também em opressão cultural sistêmica. Vamos admitir que as culturas artísticas sejam parte importante da sociedade de consumo. Música, dança, culinária, teatro, essas linguagens , saberes, práticas e estéticas foram irremediavelmente convertidas em produtos. Vamos pensar que espetáculo, rádio, disco, cinema, televisão, teatro sejam ferramentas de entretenimentos que geram lucros não calculáveis e poder em mãos de uma minoria branca. Vamos admitir que Carnavais, São João, Micaretas, Festas de Bois e Burrinhas sejam criações estéticas, culturais convertidas em entretenimento urbano. Uma vez foram criados ao longo de séculos de trocas, convivências, apropriações, expropriações e opressõa cultural, operada principalmente a base da sociedade, por mestiços, negros e indígenas. Agora coloca tudo isso como produto e chama os brancos empresários dos negócios do show e veja no que dá”, assim enuncia o africanista e historiador Salloma Salomão o panorama brasileiro, que engloba tanto as apropriações culturais recentes quanto as expropriações históricas. Na atualidade, os significados e símbolos culturais estão em disputa, em constante tensão, em reivindicação permanente por aqueles de quem foram expropriados no contexto colonial ou neocolonial, que agora tem voz para reclamar autoria: “Não podemos ser ingênuos de achar que no Brasil não existe racismo e ficar batendo na tecla do ‘mito da democracia racial’. O racismo se dá de forma gritante e, os símbolos acabam sendo apropriados nessa lógica de dominação, onde a cultura dominante acredita e reproduz que somos subordinados aos seus desejos. Isso foi sendo feito historicamente por aqui, a diferença é que agora nós negras e negros temos como apontar o racismo e dizer NÃO. Nossos símbolos não são modismos, carregam o simbolismo de uma identidade étnica que foi subalternizada por anos, isso não aceitamos mais”, diz Elaine Oliveira, mestre em Ciências Sociais e colaboradora do site Blogueiras Negras. A cultura torna-se arena política para o debate da apropriação, tribunal de guerra dos espólios coloniais. Vamos a ele. O ator Carlos Ataíde, do grupo Os Fofos que Encenam, aparece ao fundo em uma imagem da divulgação da peça “A Mulher do Trem”, no Itaú Cultural. Encenada desde 2003, no Teatro Folha, a peça conta com o ator que, mesmo sendo negro, é pintado com uma tinta preta e traços faciais exagerados. Quando as primeiras fotos foram divulgadas no Facebook da instituição, o teto da rede social caiu sobre a cabeça de um Itaú Cultural meio atarantado, bombardeado de críticas à montagem. incluir hiperlinks: https://www.youtube.com/watch?v=wIdMX2wgDn8 https://www.youtube.com/watch?v=wHz8CAvYwNE http://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/25/opinion/1432564283_075923.html A chamada “máscara do negro” era comum ao teatro circense e surgida na Commedia Dell’Arte, teatro popular criado no século XV na Europa. Usada em uma época em que os negros não podiam atuar no teatro profissional, mas eram representados em algumas peças, a técnica permaneceu na tradição do teatro até os dias de hoje. Um ar caricatural grosseiro e usualmente cômico é dado aos personagens negros, principalmente no século XIX, quando a maquiagem era uma ferramenta de sátira e ridicularização. O filme “The Jazz Singer”, de 1927, entrou para a História como primeiro filme falado, o primeiro a trazer diálogos com som sincronizado. Pouco se comenta sobre o uso do blackface por Al Jolson na produção. Num filme que viria a representar a decadência do cinema mudo, o hibridismo próprio de todo elemento de transição traz não só uma sonorização algo precária como esta técnica própria do teatro do século anterior, que talvez se explique pelas conexões de Jolson com o teatro burlesco e o vaudeville. Homem do entretenimento, o ator é, ele próprio, um personagem simbólico para compreender as dinâmicas de identidade, raça, imigração e cultura na sociedade americana da época. Lituano, judeu, com sorriso largo de um Sean Connery menos bem apessoado, fez-se estrela da Broadway nos anos 20 e passou a atuar também no cinema, participação que catapultou sua popularidade. Na clássica trajetória do “self-made man”, embora enquanto parte de uma minoria étnica, ainda que branca, Al ficou creditado por apresentar a audiências brancas o jazz e o blues através de suas apresentações usando o blackface. O argumento de que seu trabalho teria aberto caminho para músicos negros se apresentassem no show business norte-americano, de Duke Ellington a Nat King Cole, se sustenta num país onde os espaços raciais mistos era ainda um sonho a décadas de ser conquistado pelo movimento negro. Numa sociedade onde as minorias raciais podem e devem representar a si mesmas, qual a justificativa para o blackface? https://www.youtube.com/watch?v=PIaj7FNHnjQ : hiperlink O “blackface” e sua repercussão nas redes sociais fizeram com que o Itaú convocasse um debate, para o qual foram convidados ativistas do movimento negro, especialistas em teatro e os responsáveis pela produção da peça. Além do cancelamento da montagem como era feita até então, o grupo também pediu desculpas públicas e debateu a questão em meio a diversas evidências do uso dessa técnica considerada racista. O debate do dia 12 de maio, embora episódio histórico na sociedade brasileira, e mesmo o racismo, seu mote, não são os objetos diretos dessa investigação. Mas são pontos de partida: a “apropriação cultural”, fenômeno controverso e de inconteste presença no Brasil e onde quer que esteja presente a gangorra simbólica de colonizador/colonizado, opressor/oprimido, se encontra bem traduzida alegoricamente no blackface. Nele como na apropriação, simbolicamente, uma cultura hegemônica porta a máscara de outra, tirando-lhe a primazia de representar a si mesma. Como Chris Marker diz sobre a máscara africana no filme-ensaio “As Estátuas Também Morrem”: “encontramos ali o pitoresco, onde um membro na comunidade negra vê a face de uma cultura”. crédito: New York Public Library/Creative Commons https://www.youtube.com/watch?v=hzFeuiZKHcg O termo ‘apropriação’ é forte e contém em si uma conotação de “roubo” ou invasão. Entretanto, a presença da assimilação cultural já vem sendo estudada pela antropologia, conhecida também como “empréstimo cultural” e considerada como parte integrante das dinâmicas sociais e do contato entre as diferentes culturas e tradições. Em um mundo cada vez mais globalizado e conectado, em que o dono do restaurante japonês é português e a menina que usa adereços indianos é uma WASP, as fronteiras da apropriação são turvas e parecem negociáveis. Mas o são de fato? Por que as apropriações despertam agora como uma questão de relevância, mesmo em discussões em relação a indústria cultural? O momento é, portanto, de questionamento dos etnocentrismos configurados pela história. Principalmente em relação aos privilégios, que se destacam na possibilidade do ator branco de se pintar de preto ou usar elementos asiáticos enquanto o contrário dificilmente acontece. Nos EUA Um caso que despertou esse assunto sobretudo nas redes sociais foi uma entrevista e as declarações da rapper nova-iorquina Azealia Banks. Nela, Banks defendia emocionada a presença de negros em ambientes culturais criados e mantidos pela população afro-americana. A entrevista foi na rádio americana Hot 97, como resposta a opinião dela sobre os rappers brancos. "Quando eles fazem essas indicações no Grammy, o que dizem para as crianças brancas é 'Você é ótima! Você é incrível! Você pode pode fazer qualquer coisa que quiser', enquanto para as crianças negras dizem 'Você não tem nada. Você não possui nada, nem mesmo o que você e seu povo criaram'. E isso me irrita muito", discorre Banks sobre artistas brancos presentes na black music americana. O discurso de Banks escancarou a subversão de setores da cultura que eram anteriormente destacados pela resistência racial. O exemplo claro veio em seguida, com uma pesquisa que demonstrou que as premiações do show business americano, como o Grammy Awards, tem apresentado um número cada vez maior de brancos premiados. Em contrapartida, uma queda clara do número de negros que vem ganhando nas categorias existentes. http://www.complex.com/music/2015/02/a-new-study-has-discovered-a-startling-trend-in-grammy-winners A origem negra do jazz é suficientemente conhecida, mas quando o gênero atinge o sucesso mainstream no início do século XX, é na embalagem de rostos brancos bem aprumados nas big bans de symphonic jazz, uma modalidade mais “aceitável” para as plateias brancas. Na literatura americana sobre o tema e na fala dos militantes, esse processo ficou conhecido como “whitewashing”, e seria visto ainda muitas vezes ao longo da História. Alguns falam de genocídio cultural: separar um povo de sua arte, associando-a a novos atores, mais populares, brancos, palatáveis e bem quistos pela indústria. No rock e no blues, outros dois gêneros em que a comunidade negra foi pioneira, as alcunhas de “rei”, os rostos conhecidos, eram majoritariamente dos brancos: “Um mundo falsificado onde Elvis é o rei do rock ‘n roll, Clapton é o deus da guitarra, Sinatra é ‘a voz’ e Astaire o maior dançarino”, elenca com precisão sobre a invizibilização de artistas negros o artigo “He wasn’t my king”, publicado por Helen Kolawole no jornal britânico The Guardian. State Library of Queensland/Creative Commons O sistema de venda e circulação da indústria da música, segundo Irimara Gomes, do site Blogueiras Negras, já reflete em si um patamar de desigualdade. Ele é também muito mais destacado no que se refere ao alcance e valorização de artistas oriundos de minorias raciais ou sociais. Entretanto, essas minorias são, na verdade, grandes maiorias em diversos desses países, como o Brasil. A própria platéia dos aparatos culturais, como shows e teatro, se mostra majoritariamente branca e acaba também pautando a escolha dos artistas de sucesso. “No momento em que um artista fica famoso, quando ele começa a ser cultuado por um público branco e classe média, querendo ou não essa classe legitima o que deve vender e o que não deve. Quando isso acontece esse artista começa a ganhar mais dinheiro e o trabalho dele começa a custar mais, porque quem controla o capital é a burguesia branca. O preço dos shows desses artistas muitas vezes é extremamente pesado pra ser pago por pessoas que vem de classes mais baixas, então quem acaba consumindo mais são as pessoas brancas que tem, por serem privilegiadas pelos sistema, um acesso mais fácil a essa cultura. O público negro desse artista não é inexistente, ele apenas está ligado a culturas mais acessíveis, por exemplo o funk, mesmo que em alguns lugares exista festas de funk que uma classe média branca, o funk é pobre e negro, tanto quanto o rap brasileiro”, ressalta a blogueira. Por que a apropriação é tão relevante? Em certos casos, a apropriação assume níveis ainda mais combatidos. Principalmente em meio a condições em que se pauta e debate o racismo e a xenofobia em diversos países. Nos papéis onde há apropriação há sempre uma relação com a opressão, na qual é possível evidenciar a posição do apropriador como oriundo de setores privilegiados. A grande questão, nesse caso, é o etnocentrismo. Afinal, esses mecanismos de apropriação tem apenas um lado e papéis definidos. O que é mais contundente e combatido é justamente a ignorância e desconhecimento de causa ao tratar uma cultura diferente. Não só utilizar seus símbolos e ícones desprovidos de contexto, mas também usá-los como elementos e produtos postos à venda. É o caso dos instrumentos de luta que se firmaram historicamente através da resistência cultural e da defesa de certos grupos, como o exemplo dos adereços e tipos de cabelo, que se transformam também em elementos commoditizados pela moda. “É uma questão puramente de estética pro público branco, que só se apropria de fatores culturais da população negra pra parecer cool, parece que estética é só aparência física, mas com a música é a mesma relação. Acho que hoje ela está mais presente, pelo menos no ambiente de Porto Alegre que é onde eu moro, nas festas com nome, música, aparência negra, mas com um público total de pessoas brancas. O que pra mim já automaticamente reflete no contexto Americano, tanto Brasileiro quanto Estadunense, de música”, defende Irimara. A própria conotação social já aponta essa grande desigualdade e o privilégio de certos setores. A expressão clara disso está na letra de Geraldo Filme, em “Vá Cuidar da Sua Vida”: “Crioulo cantando samba?/Era coisa feia/Esse é negro é vagabundo/Joga ele na cadeia/Hoje o branco tá no samba/Quero ver como é que fica/Todo mundo bate palmas/Quando ele toca cuíca/Vá cuidar...??/Nego jogando pernada?/Mesmo jogando rasteira/Todo mundo condenava/Uma simples brincadeira/E o negro deixou de tudo/Acreditou na besteira/Hoje só tem gente branca/Na escola de capoeira”. Mas e no caso brasileiro? Não somos todos brasileiros? “A dificuldade reflete as relações de poder profundamente assimétricas. A Brasilidade é uma criação ideológica do sudeste rico e branco, criada com melhor das intenções na afirmação da suposta identidade do Estado Nação. Mas observando criticamente esse processo, sabemos que tem sido utilizada por mistificadores nacionalistas na linha conservadora (Darcy Ribeiro, Da Matta, Hermano Viana, Lilia Schwarcz, etc.) e que atualmente visa encobrir as desigualdades, as tensões e conflitos sociais e raciais. A identidade brasileira, como resultado da tríade racial (negro, branco e índio) ainda presente nos livros didáticos, simplesmente não existe. Mas tal imagem pode ser evocada em estádios de futebol e em eventos públicos em geral, sobretudo quando diante de um conflito eminente”, explica Salloma Salomão. E isso também se faz presente em outras culturas. É o caso de ideogramas chineses utilizados no ocidente com um fundamento meramente estético. Ou, ainda, certos elementos da filosofia e religião de países asiáticos subvertidos em elementos comerciais e novas terapias desenvolvidas no ocidente. Na história os casos são inúmeros, com a dominação e conquista de novos territórios e a imposição da cultura da metrópole sobre eles. Entretanto, atualmente essas inserções brutais se dão de maneira muito mais indireta e com outras percepções. Elas estão principalmente vinculadas com a instância do capital, na inclusão de uma estética de moda vendável e lucrativa. Ela chega ao ponto da indumentária dos ativistas “Black Blocks” ser copiada em editoriais de moda. “Os setores sociais subalternos fornecem matérias primas para as corporações hegemônicas e assim como os países pobres fornecem para a indústria de transformação. Quando cineastas brancos paulistas e cariocas circulam pelo país capturando sons e imagens de “culturas tradicionais”, transformam tudo em vídeos, teses, sites e discos e sequer remetem uma copia desses produtos para as comunidades, isso é o que?”, aponta Salloma. Arte africana para quem? Uma estamparia ou uma escultura originária de tribos africanas carrega em si mais do que uma valoração estética. Gerações transmitidas na forma de uma cultura oral que passa de pessoa a pessoa, expressa em traços e elementos que ganharam notoriedade no Ocidente só no século XX, com um certo "olhar modernista" sobre essa produção. Essa divulgação no Ocidente e nas grandes galerias e salões de arte se deu também através da pesquisa e exploração desses elementos por artistas como Pablo Picasso. O artista tem até mesmo uma fase de sua produção conhecida como “Período Africano”. Uma de suas principais obras, Les Demoiselles d’Avignon, tem duas figuras inspiradas nos traços da África. Seu quadro “Retrato de Gertrude Stein”, de 1905, já trazem elementos das máscaras ao pintar o rosto da escritora americana. Essa influência desponta, então, em um dos principais movimentos modernistas: o cubismo. Tudo, é claro, sob o nome e a tutela do artista europeu. Imagine-se, portanto, do outro lado. Ao invés da leitura da história da arte por meio das linhas postas pela arte europeia, há antes dela toda uma rica tradição na produção e manifestação de culturas e povos. Aqueles que trabalharam na produção das imagens apropriadas por Picasso mal tinha sequer a ideia do destino final de suas peças. Menos beneficiados ainda foram as gerações que permanecem anônimas aos compradores de arte e que, por anos a fio, trabalharam para que aquele produto final fosse atingido. É o que ressalta a pesquisadora do Museu Afro Brasil, Juliana Ribeiro: “A maioria desses artistas não estava preocupada com o significado e a importância que as máscaras e estatuetas tinham para suas sociedades originais. A maioria desses artistas sequer pisou no continente africano. Eles estavam interessados basicamente nos aspectos formais das obras. Além disso, acho que a História da arte dá uma importância muito exagerada ao papel do Picasso no que diz respeito à arte africana. É claro que esses artistas europeus tiveram um papel fundamental na divulgação e disseminação da arte africana no ocidente, aquecendo o mercado dessa arte, mas para as sociedades africanas em geral, que estavam sob o domínio colonial, esse reflexo não foi representativo naquele momento. Havia outras questões muito mais graves que essas sociedades tinham que lidar, como a própria violência física e o trabalho forçado, por exemplo.” O distanciamento desses dois universos e a apropriação cultural fica evidente quando se pensa no destino dessas obras em contraponto à fonte de referências para a criação delas. Essa grande desigualdade se acentua até hoje, com efeitos que reverberam nas sociedades e feridas que hoje são expostas. “É importante considerar, no entanto, que depois da descolonização os países africanos se deram conta realmente de que o Ocidente detém hoje (num processo que começou há séculos) a maioria das coleções de arte africana e que os africanos de forma geral não têm acesso a elas nem através de exposições advindas da Europa ou dos Estados Unidos. Ou seja, a maioria da população da África não tem acesso a um importante patrimônio de sua própria cultura e não é por acaso que questões de repatriação de obras africanas estão cada vez mais em evidência, mesmo que todos saibam que as chances desses objetos retornarem aos seus lugares de origem são mínimas”. A problemática se reflete até mesmo na produção dos artistas contemporâneos. Com a institucionalização de um “padrão estético africano” por meio da chegada dessas peças e influências através de artistas ocidentais como Picasso, o mercado global de arte passa também a exigir que os artistas dos mais diversos países do continente africano produzam sob a mesma “linha tradicional”, cerceados por esse estereótipo de mercado. “Dessa forma, hoje, grande parte dos artistas africanos contemporâneos se encontra numa encruzilhada. Há o desejo declarado por parte deles em se expressar livremente em suas obras, escolhendo os materiais e temas que considerem importantes (assim como acontece com os demais artistas contemporâneos do ocidente), mas ao mesmo tempo esses mesmos artistas reconhecem que só venderão suas obras e terão espaço em galerias e exposições se reforçarem essa ideia de África que foi projetada. Assim, não por acaso se encontra uma quantidade considerável de artistas contemporâneos africanos que trabalham com materiais recicláveis, reforçando a ideia de pobreza do continente africano. O fato é que na prática esses artistas poderiam trabalhar com qualquer outro material e muitos deles nem vivem no continente africano. Assim, o que vejo é que a questão do regionalismo é muitas vezes “construída” e reforçada por galerias, museus, críticos e curadores e isso porque há muitas vantagens principalmente econômicas em criar e manter esses novos nichos”, explica a pesquisadora. Um novo colonialismo Nas palavras de Juliana Ribeiro: “O grande perigo da apropriação cultural se dá quando alguém de fora passa ‘a falar em nome de’, distorcer os valores de uma cultura ou determinar o que o outro (geralmente uma minoria) deve fazer ou como agir. O fato é que sempre está em jogo uma relação de poder quando se fala em apropriação cultural”. Diferentemente da assimilação ou do contato horizontal e frutífero entre as duas culturas, a apropriação trata muito mais de usos que não representam aqueles que propagam originalmente a cultura. No caso brasileiro, com fronteiras borradas pela teoria da mestiçagem, essa questão torna-se ainda mais delicada, principalmente na defesa dos apropriados. É preciso entender, no entanto, que as culturas presentes no Brasil foram artificialmente amalgamadas na ideia de um território nacional e sob a premissa de uma formação cultural unificada. Ideia contraditória, principalmente tendo em vista as dimensões continentais e o modo brutal e desigual que essas culturas foram postas em um mesmo espaço físico. É preciso entender a diferença da chegada da cultura africana ao país, nos navios negreiros, sob o açoite e o pior dos abusos, a cultura indígena dizimada e expulsa de suas terras e a chegada posterior de imigrantes europeus, sob o viés de “embranquecimento” do país. A velha ótica colonizatória não só se contenta com a convivência pacífica e harmônica, mas ainda mantém seu ideal de extorsão financeira e posse. É o caso dos elementos de outras culturas, que acabam por ser subjulgados como elementos passíveis de compra e dominação por parte de um grupo opressor. É o caso dos índios brasileiros, estereotipados como vagabundos e expulsos de suas terras originais. Hoje, reproduções de seus utensílios e instrumentos musicais podem ser encontrados em feirinhas de artesanato, lojas de souvenirs, feitos geralmente por não-indígenas. No próprio carnaval não é raro ver fantasias sendo vendidas em grandes lojas e diversas pessoas circulando com eles durante as festas. A polêmica também está presente nos Estados Unidos, principalmente com o uso fashion de adereços indígenas em festivais de música, como o Coachella Music Festival. Por lá a discussão é pautada principalmente pelo comparativo com o “blackface” e todo o histórico de massacre e exploração desses povos, principalmente com a corrida pelo petróleo. A discussão fez com que surgisssem até mesmo blogs que marcam a sátira e ironia para ressaltar essa apropriação. A exemplo, o “White People Wearing Headdresses”, traduzido como “Pessoas Brancas Usando Cocares”. http://nativeappropriations.com/2010/04/but-why-cant-i-wear-a-hipster-headdress.html Já na Austrália, a questão envolveu ainda medidas mais drásticas. Os artistas aborígenes buscaram instituir marcas de autenticidade para suas obras tradicionais em contraponto às imitações crescentes feitas até mesmo por grandes marcas. Isso garantiria que seu trabalho fosse valorizado e o público comprasse uma peça autêntica. Já em 1999 essa marca se mostrou ainda mais relevante com a condenação de John O’Loughlin pela venda de objetos artísticos aborígenes pintados por não-indígenas. Ao passo que essa população é ainda uma questão social não resolvida na Austrália, constituindo o setor mais marginalizado e em piores condições do país dos altos índices de qualidade de vida. http://www.academia.edu/11658873/Artigo_sobre_autoria_e_autenticidade_na_arte_ind%C3%ADgena_da_Austr%C3%A1lia http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/739/conteudo+opera.shtml Representatividade e como reverter? Tomando dois passos para trás para olhar com certa distância os blocos de argumentos empilhados em pirâmide, sobressai que, no campo da cultura, a representatividade dos grupos minoritários importa. E não qualquer representatividade: uma que não simplifique, que não faça esboços grosseiros e caricaturais, mas que imprima autenticidade e justeza no retrato e no espaço em que os autores dessa cultura se representem, falem e ensinem sobre si próprios às outras culturas em contato. Por outro lado, a ideia de isolar, de frear o trânsito de símbolos, elementos e significados parece empobrecedora. A conciliação talvez esteja na consciência - como consumidores dessa cultura, é importante estar com os olhos abertos e estabelecer uma crítica sobre todo o conteúdo que é fornecido. Principalmente aquele que não apresenta algum aprofundamento, coerência e respeito sobre outra cultura. No caso do Brasil, essa problemática enfrenta ainda mais desdobramentos, principalmente com a neutralidade dada pela ideia de uma cultura neutra, desse intercâmbio se valer de um aprofundamento ainda maior. Ressaltado pela ideia de que “todos tem um pé na senzala” ou “minha tataravó foi índia”, argumentos que por si só já expõem um racismo e a sobressalência de um grupo sobre outro. “Não acho que no Brasil tenha nada mascarado, o racismo aqui é explícito. É berrante a apropriação, as estátuas de Iemanjá branca estão nas praias, nos cartões postais, por todo canto. Pessoas não negras desfilam turbantes em todos os espaços, a capoeira foi modificada e vejo brancos dando entrevistas sobre ela falando da “dança” do capoeirista. Não se fala que a capoeira tomou esse caráter para ser aceita e divulgada pelo país, pois era a luta dos negros que fugiam das senzalas, significava insubordinação e resistência. Não, aqui não tem nada de mascarado ou velado, o que se quer é que não se questione as hierarquias de poder e que mantenha as estruturas sociais como estiveram por décadas, ou seja, o branco na casa grande e o negro na senzala, a cultura branca como dominante e a do negro como dominada” pontua Eliane Oliveira, do Blogueiras Negras. https://www.youtube.com/watch?v=Sos4PizyVgE A resposta vem diretamente na consciência desse expectador, que precisa absorver criticamente o conteúdo que recebe. “Sim, todo o branco é racista e o negro reproduz racismo. Do mesmo jeito que o homem é machista e a mulher reproduz o machismo, nós somos estruturados por uma sociedade que prioriza padrões eurocêntricos e patriarcais. O único jeito de acabar com isso é desconstruindo esses valores um a um constantemente, numa auto-análise que por vezes é muito cansativa. O branco, principalmente o classe média, não gosta de assumir sua responsabilidade no racismo, não gosta de se assumir racista, mas é. Mesmo que tente disfarçar esse racismo de admiração. O único dialogo possível é se essa defensiva branca baixar, esse branco se ver como agente construtor desses preconceitos, um agente ativo porque controla, querendo ou não, o capital e tem um privilégio social e institucional sobre o negro. Não sei como ser mais direta que isso, mas acho que escutar o que o negro tem a dizer é o melhor jeito de começar”, aponta a blogueira Irimara. Publicado em: http://www.usp.br/cje/babel/

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